31 de Março de 2025
Há livros que, mais do que contar histórias, escancaram as janelas da memória coletiva. "O Ateneu", de Raul Pompeia; "A Cidade e os Cachorros", de Mario Vargas Llosa; e "O Jovem Törless", de Robert Musil, são espelhos antigos que ainda nos refletem, mesmo que com bordas empoeiradas. Todos eles têm como pano de fundo instituições escolares rígidas, internatos de formação intelectual e moral, que, sob o pretexto de educar, muitas vezes domesticavam. E é impossível não compará-los com o modo como criamos nossas crianças hoje.
Nestes colégios, o saber era uma fortaleza murada. Um castelo de pedras frias onde meninos eram moldados à força, entre castigos, hierarquias, humilhações e silêncios. Em O Ateneu, Sérgio entra com a promessa do pai: "Vais encontrar o mundo". E o que encontra é uma selva de vaidades e competição, onde crescer é sobreviver. Já em A Cidade e os Cachorros, o Colégio Militar Leoncio Prado é palco de violência institucionalizada, onde a honra se confunde com brutalidade e onde os meninos são ensinados a matar a sensibilidade antes que aprendam a escrever uma boa redação. E em O Jovem Törless, o internato é um laboratório filosófico do mal, onde a razão e o instinto se digladiam, e o despertar da consciência é também o despertar da dúvida, do abismo.
Essas instituições vendiam a ideia de que, para formar um homem forte, era necessário isolá-lo. O afastamento dos pais era parte do rito de passagem. Um menino só se tornaria adulto se rompesse o cordão que o ligava à casa, à ternura, ao colo. E esse distanciamento não era apenas físico, mas também emocional. O amor paterno se expressava com parcimônia, em frases como “vai com Deus” ou em cartas formais, quase impessoais. Os filhos eram entregues a terceiros, confiados a um sistema que se dizia infalível — como se a dor fizesse parte necessária da formação do caráter.
Hoje, no entanto, vivemos o extremo oposto. Nunca os pais estiveram tão presentes — ou, ao menos, tão próximos. Acompanham o desenvolvimento dos filhos em tempo real, por meio de câmeras nas creches, mensagens de WhatsApp, reuniões semanais, aplicativos que atualizam boletins e tarefas quase que instantaneamente. Se antes havia o medo de uma infância sem amparo, agora paira o risco de uma infância sem autonomia. Crianças que não sabem cair porque nunca puderam andar sozinhas.
Claro que há ganhos nesse novo modelo. A presença afetuosa, o apoio emocional, o vínculo fortalecido — tudo isso são avanços indiscutíveis. Os meninos de ontem sofriam calados, suas dores eram abafadas pela disciplina. Hoje, a escuta está mais ativa. Há mais diálogo, mais afeto, mais compreensão. Mas também há uma inquietante falta de limites, um receio constante de frustrar. Em nome do amor, muitos pais protegem tanto que impedem o crescimento. E o crescimento, sabemos, exige conflito. Exige risco.
É curioso pensar que os internatos do passado ensinavam a suportar o mundo, ainda que com traumas e durezas. Os ambientes eram cruéis, sim, mas havia neles uma espécie de laboratório do real. Ali se aprendia a lidar com o outro, com o fracasso, com o abandono. Já os ambientes de hoje muitas vezes ensinam a evitar o mundo. Crianças criadas sob constante vigilância, em escolas que substituem a autoridade pelo entretenimento, correm o risco de não desenvolver casca — e a vida, como sabemos, cobra casca.
Mas seria tolice idealizar qualquer um dos dois modelos. O passado formava meninos solitários, endurecidos; o presente tende a formar meninos ansiosos, frágeis, hiperprotegidos. E talvez o desafio da nossa geração seja exatamente esse: encontrar o ponto de equilíbrio entre o abandono e o sufocamento. Nem lançar os filhos ao mundo sem corda, nem segurá-los com rédeas curtas demais.
Ao reler esses três livros, noto que há algo comum entre todos os jovens retratados: a solidão. Sérgio, Törless, Jaguar — todos caminham sozinhos por corredores frios, cercados de outros meninos que também fingem não sentir. O mundo adulto, ausente ou violento, não os vê de fato. E talvez a nossa maior lição seja essa: ver. Estar presente com presença verdadeira. Ensinar sem tutelar. Amar sem controlar.
Porque educação não é apenas instrução — é formação. E formar alguém é, em última instância, ajudá-lo a tornar-se quem é, e não quem gostaríamos que fosse. Os colégios internos do passado, com seus hinos e seus castigos, falharam ao tentar produzir homens em série. E hoje corremos o risco inverso: tentar preservar demais a infância, impedindo-a de virar maturidade.
A criança precisa da liberdade para se descobrir, mas também precisa da frustração para se moldar. Precisa da presença dos pais, mas também da distância necessária para encontrar a própria voz. E, acima de tudo, precisa ser olhada como um ser inteiro, em construção — e não como projeto de perfeição, nem como reflexo dos desejos dos adultos.
Sim, os tempos mudaram. As instituições mudaram. Mas a infância continua sendo esse território sagrado e perigoso, onde se forja a alma. Que saibamos cuidar dela com firmeza e ternura, com presença e espaço. Porque, no fim, o que vai formar um ser humano não é o internato, nem o tablet, nem o excesso de regras ou de mimos — mas o olhar atento de quem guia, e o silêncio respeitoso de quem permite que o outro caminhe com as próprias pernas.
25 de Janeiro de 2025.
Não consigo evitar a sensação de que A Metamorfose, de Kafka, diz mais sobre a condição humana do que gostaríamos de admitir. Quando penso em Gregor Samsa acordando transformado em um inseto monstruoso, vejo muito mais do que uma metáfora sobre alienação. Vejo alguém que, ainda consciente de si, percebe que o mundo ao seu redor começa a tratá-lo como um fardo. E então me pergunto: não é isso o que acontece com aqueles que enfrentam doenças como o Alzheimer e a demência?
Imagino como deve ser a angústia de sentir-se preso dentro do próprio corpo, de tentar se comunicar e ser recebido com impaciência, com olhares de pena ou de desespero. Gregor ainda pensa, ainda sente, mas sua nova forma o impede de expressar quem ele realmente é. E não é exatamente assim com quem perde, pouco a pouco, a capacidade de se lembrar, de falar, de se conectar com o mundo?
A pior parte não é apenas a doença em si, mas a forma como os outros começam a te ver. No começo, há esforço, há tentativas genuínas de manter tudo igual. Mas, à medida que o tempo passa, os sorrisos ficam mais forçados, os toques mais apressados, e os diálogos se tornam monólogos vazios. Até que, um dia, aquele que você era se dissolve por completo – e você se torna apenas um corpo, um problema a ser gerenciado.
Esse livro e esse pensamento me remete muito ao tema "dignidade". A sociedade em que vivemos valoriza quem é produtivo, quem consegue se virar sozinho, quem tem "utilidade". Mas e quando alguém não pode mais cuidar de si? E quando sua mente se perde em labirintos que nem ela mesma consegue decifrar? Será que ainda olhamos para essa pessoa como um ser humano inteiro, ou apenas como uma lembrança do que ela foi?
Guimarães Rosa escreveu que "se lembro, tenho". E isso me assombra, pois é um medo que possuo e acredito que muitos outros também. Porque, sim, enquanto a memória resiste, a identidade sobrevive. Mas e quando a própria pessoa não se lembra mais? E se os outros pararem de lembrar? É aí que mora o verdadeiro esquecimento, o tipo que mata antes da morte física.
A medicina prolonga vidas, mas nem sempre protege a essência do que significa estar vivo. Manter um corpo respirando não significa que aquela pessoa ainda está ali, presente. Mas, ao mesmo tempo, me pergunto: será que o que define a existência de alguém é apenas sua consciência? Ou será que viver também é ser lembrado, ser reconhecido, ser tratado com humanidade até o último instante?
Kafka talvez não tivesse o Alzheimer em mente quando escreveu A Metamorfose, mas sua história encapsula esse medo profundo: o medo de perder-se e de ser esquecido pelos outros antes mesmo de morrer. No fim, Gregor já estava morto para sua família muito antes de seu corpo parar. E essa é a ideia que mais me assusta.
Se há algo que podemos fazer, talvez seja isso: lembrar. Manter viva a humanidade de quem já não pode mais reivindicá-la sozinho. Porque, se lembrar é ter, então esquecer é apagar. E ninguém deveria ser apagado antes do tempo.
19 de Dezembro de 2024.
Ler O Anticristo, de Vladimir Soloviev, e O Senhor do Mundo, de Robert Hugh Benson, foi uma experiência profunda e, de certa forma, perturbadora. Apesar de escritos em épocas distintas, ambos os livros abordam questões atemporais: a luta espiritual da humanidade, os perigos de abandonar a fé e a sedução de ideais que prometem paz e progresso às custas da verdade. Mais do que narrativas sobre o fim dos tempos, são reflexões poderosas sobre o nosso presente e o impacto de uma sociedade que parece se afastar, cada vez mais, de Deus.
Um Mundo Sem Deus?
Em O Anticristo, Soloviev nos transporta para um futuro onde um líder mundial carismático surge como a solução para todos os problemas da humanidade. Ele é culto, eloquente e defensor de ideais aparentemente nobres, como paz mundial, progresso e justiça social. Porém, existe um preço oculto: para aceitar suas promessas, a humanidade deve rejeitar Cristo. Este líder, que é o próprio Anticristo, conquista as massas com um discurso impecável, mas aos poucos revela sua verdadeira natureza. A resistência a ele é liderada por um pequeno grupo de cristãos fiéis, que, mesmo perseguidos, permanecem firmes em sua fé.
De forma semelhante, O Senhor do Mundo, de Benson, apresenta Julian Felsenburgh, um político visionário que unifica a humanidade sob uma nova ordem global. Contudo, essa unidade é construída sobre o abandono da religião, especialmente do cristianismo. Assim como no livro de Soloviev, a paz oferecida é superficial e ilusória, escondendo um controle absoluto e a negação da verdade espiritual.
Essas histórias soam assustadoramente atuais. Vivemos em um mundo onde a fé é frequentemente vista como ultrapassada ou irrelevante. A busca incessante pelo materialismo, pela ciência como única verdade e pela segurança imediata ofusca a necessidade de transcendência. Nesse contexto, promessas de líderes que oferecem soluções rápidas e conforto imediato podem ser extremamente sedutoras.
A Fé Como Resistência
O que mais me impactou nessas obras foi a coragem dos pequenos grupos de cristãos que, mesmo diante de perseguições brutais, mantêm-se fiéis à sua crença. Soloviev e Benson mostram que o verdadeiro mal raramente se apresenta de forma explícita; ele geralmente se disfarça de bem, de progresso, de justiça.
Essa resistência espiritual é uma inspiração, especialmente nos dias de hoje, em que tantos parecem perder o propósito em um mundo cada vez mais materialista. A mensagem dos livros é clara: mesmo quando a fé é marginalizada, ela pode ser uma força poderosa e transformadora. Resistir ao que é falso exige coragem, mas é também um ato de amor e esperança.
A Atualidade das Duas Obras
Ao observar o mundo atual, é impossível não traçar paralelos com as histórias desses livros. Estamos enfrentando uma crise de valores e propósito. A busca desenfreada por conforto material e satisfação imediata nos empobreceu espiritualmente. O aumento dos índices de ansiedade, depressão e desesperança reflete isso. A perda da fé — não apenas em Deus, mas em algo maior que nós mesmos — parece estar nos custando caro.
Em O Anticristo e O Senhor do Mundo, vemos o que acontece quando a humanidade rejeita o transcendente em nome de uma utopia terrena. O preço dessa escolha é a perda da liberdade, da verdade e, em última instância, da alma. Mesmo sendo ficções, esses livros nos alertam sobre o perigo de colocar nossa confiança em promessas fáceis ou líderes carismáticos que oferecem soluções superficiais para problemas complexos.
Por Que Você Deve Ler Esses Livros
Se você já se perguntou para onde estamos caminhando como sociedade, esses livros são um convite para refletir. Não são leituras leves, mas são incrivelmente enriquecedoras. Eles revelam como o mal pode se disfarçar de bem, como a fé pode ser uma força revolucionária e como a verdadeira paz nunca pode ser alcançada às custas da verdade.
Ler O Anticristo e O Senhor do Mundo me fez repensar muitas coisas. Será que estamos valorizando o que realmente importa? Estamos dispostos a sacrificar nossa espiritualidade por um conforto momentâneo? O quanto a espiritualidade é importante em nossas vidas? Será que a fé no homem deve substituir a Fé em Deus? Essas perguntas continuam a ecoar em mim, e acredito que também ecoarão em você.
Recomendo que leia essas obras com o coração aberto, conectando suas mensagens ao mundo ao seu redor. Elas não são apenas alertas sobre o futuro, mas convites para refletir sobre o presente. Em tempos tão incertos, talvez o que mais precisemos seja exatamente essa dose de reflexão — e, quem sabe, de Fé.
28 de Novembro de 2024.
A leitura dos clássicos é um portal para o entendimento das questões mais fundamentais da humanidade. Obras como as de Platão nos oferecem não apenas narrativas atemporais, mas também reflexões profundas sobre a natureza humana, o conhecimento e a sabedoria. Esses textos, escritos há séculos, continuam a dialogar com os desafios contemporâneos, revelando verdades universais e questões essenciais que permanecem relevantes. Nos clássicos, encontramos a base do pensamento crítico e a inspiração para confrontar os dilemas de nosso tempo, enriquecendo nossa compreensão do mundo e de nós mesmos.
Ao mergulharmos na riqueza dos clássicos, encontramos reflexões como as apresentadas por Platão no diálogo "Alcebíades I", onde ele, por meio de Sócrates, explora uma questão central da condição humana: a ignorância sobre a própria ignorância como um dos grandes problemas do ser humano. Neste pequeno livro, uma trecho que me marcou bastante, é um dialogo entre Sócrates e o jovem Alcebíades, no qual por meio do métodos socrático de perguntas, Sócrates desafia Alcebíades a reconhecer que, antes de liderar ou opinar, o homem deve empreender a jornada do autoconhecimento e da busca pela sabedoria. Essa lição, tão antiga quanto poderosa, revela como os erros e falhas humanas muitas vezes nascem do fato de acreditarmos saber aquilo que, na realidade, desconhecemos—a mesma questão que ecoa na sociedade moderna.
“Sócrates: Percebes, portanto, que os erros na vida prática decorrem dessa modalidade de ignorância, que consiste na presunção de sabermos o que não sabemos?
Alcebíades: Que queres dizer com isso?
Sócrates: Quando nos dispomos a fazer determinada coisa, não é por estarmos certos de saber o que fazemos?
Alcebíades: Sim.
Sócrates: E, ao contrário: não recorre a outra pessoa quem tem consciência da própria ignorância?
Alcebíades: Como não?
Sócrates: Sendo assim, os ignorantes desse tipo atravessam a vida sem cometer erros, porque deixam ao cuidado dos outros os assuntos que eles ignoram.
Alcebíades: É certo.
Sócrates: Quais são, então, as pessoas que erram? Não hão de ser, sem dúvida, as que sabem.
Alcebíades: Não, decerto.
Sócrates: Se não são, portanto, nem os que sabem, nem os ignorantes que sabem que não sabem, restam apenas os que, não sabendo, presumem saber.”
Partindo desta premissa, analisando estudos mais modernos, temos uma interessante tese nomeada de síndrome de Dunning-Kruger, a qual apresenta uma conclusão que dialoga diretamente com a reflexão socrática: indivíduos com baixos níveis de competência em determinado assunto tendem a superestimar suas habilidades, enquanto aqueles mais capacitados muitas vezes subestimam seu próprio conhecimento. Essa ilusão decorre exatamente da falta de conhecimento suficiente para reconhecer a própria limitação. Assim como Sócrates demonstrou a Alcebíades que a ignorância presunçosa é a fonte de muitos erros, os estudos contemporâneos confirmam que a confiança desproporcional ao conhecimento é um dos maiores obstáculos à tomada de decisões conscientes e acertadas.
Assim como Sócrates alertava Alcebíades sobre os perigos de liderar sem autoconhecimento, a síndrome de Dunning-Kruger nos lembra que o verdadeiro conhecimento exige humildade. Ambos os conceitos apontam para a necessidade de reflexão crítica antes de emitir julgamentos. Em um mundo onde a informação é abundante, mas a sabedoria é escassa, o desafio continua sendo o mesmo: reconhecer a própria ignorância como primeiro passo para o aprendizado.
Eu não posso deixar de pensar em quantas vezes já caí nessa armadilha. Acreditar que sabia mais do que realmente sabia, opinar com convicção sobre assuntos dos quais tinha apenas uma visão superficial. É um erro fácil de cometer, especialmente nos tempos de hoje, onde somos inundados por informações e opiniões de todos os lados. Mas, com o tempo, aprendi que a única forma de escapar dessa ilusão é cultivando a humildade intelectual: reconhecer o que não sei, buscar aprender mais, ouvir quem sabe e, principalmente, ler.
A leitura, especialmente dos clássicos, me mostrou que as grandes questões humanas já foram debatidas há séculos e que a sabedoria está ao nosso alcance, esperando por quem a busca. Cada livro que leio é um convite para refletir, para questionar minhas certezas e, quem sabe, entender um pouco mais sobre o mundo e sobre mim mesmo.
Por isso, digo com convicção: não importa quanto você já sabe ou acha que sabe, sempre há mais a aprender. E não há caminho mais transformador para isso do que abrir um livro, se perder nas palavras e encontrar, no processo, uma nova perspectiva. Leia mais. Aprenda mais. Questione mais.
20 de Outubro de 2024.
Ler “A Máquina do Tempo” de H.G. Wells é como embarcar em uma jornada, não apenas pelo futuro especulativo descrito no livro, mas também pelos caminhos sombrios da nossa própria humanidade. Ao terminar o livro, não pude deixar de refletir sobre como os Elois e os Morlocks, com suas existências tão contrastantes, oferecem um espelho inquietante do nosso presente. Isso é especialmente relevante em um mundo que testemunha avanços tecnológicos sem precedentes, onde inteligências artificiais e inovações revolucionárias redefinem nossa relação com o trabalho, o aprendizado e, talvez, até mesmo com a nossa essência humana.
No livro, os Elois representam uma sociedade de indivíduos que vivem na superfície, desfrutando de uma vida aparentemente perfeita, mas à custa de sua inteligência, iniciativa e profundidade. Eles são apáticos, incapazes de resolver problemas básicos ou reconhecer os perigos que os cercam. Ao ler sobre os Elois, me peguei pensando em como, hoje, a tecnologia tem simplificado tanto nossas vidas que muitas vezes não precisamos mais aprender ou pensar por conta própria. Com um simples toque no smartphone, traduzimos idiomas, resolvemos problemas matemáticos e até respondemos a questões complexas. É difícil não lembrar de episódios da série Black Mirror, onde a humanidade vive no conforto extremo, sem propósito, enquanto suas vidas são gerenciadas por tecnologias invasivas que anulam a necessidade de esforço ou reflexão.
Mas a que custo? Quando nos tornamos tão dependentes de inteligências artificiais para pensar por nós, estamos, de certa forma, renunciando à nossa capacidade de questionar, refletir e crescer. É como se estivéssemos caminhando para nos tornarmos os Elois — confortáveis, mas vazios.
E então existem os Morlocks, seres subterrâneos que operam as máquinas que sustentam a vida dos Elois. No contexto atual, não é difícil imaginar as inteligências artificiais e as máquinas modernas assumindo esse papel. Elas trabalham incessantemente, muitas vezes de forma invisível, otimizando processos, gerando conteúdo e, em alguns casos, substituindo completamente o trabalho humano. Mas, assim como os Morlocks no livro, há um perigo latente: ao mesmo tempo que dependemos dessas tecnologias, perdemos o controle sobre o que elas fazem e como operam. Estamos criando algo que nos sustenta, mas que também pode nos consumir.
Pense, por exemplo, nas inteligências artificiais que criam arte, escrevem textos e até resolvem dilemas éticos. São ferramentas incríveis, mas levantam questões inquietantes: Se as máquinas podem fazer tudo por nós, qual é o nosso papel? O que acontece com a humanidade quando não há mais necessidade de aprender, criar ou lutar por algo? Como Wells escreveu:
“A Natureza nunca apela para a inteligência até que o hábito e o instinto sejam inúteis. Não há inteligência onde não há mudança e necessidade.”
H.G. Wells escreveu “A Máquina do Tempo” como uma crítica às divisões sociais e à alienação industrial de sua época, mas sua mensagem transcende o tempo. Hoje, vivemos em um mundo onde a desigualdade é tanto econômica quanto cognitiva. Aqueles que têm acesso à tecnologia e ao aprendizado crítico estão cada vez mais distantes dos que não têm. Assim como os Elois e os Morlocks, nossa sociedade pode estar se dividindo em dois extremos.
Este livro me fez refletir sobre a necessidade de equilibrarmos o uso da tecnologia com o cultivo de nossa capacidade humana. Não podemos permitir que a comodidade nos roube a curiosidade, que a automação nos roube a criatividade ou que o progresso nos torne prisioneiros de nossa própria inércia.
Se a história nos ensina algo, é que o futuro ainda está em nossas mãos. Podemos usar a tecnologia para nos libertar, mas precisamos garantir que nunca deixemos de pensar, aprender e lutar pelo que nos torna verdadeiramente humanos. Caso contrário, podemos nos encontrar, um dia, olhando para o futuro e nos perguntando, como o Viajante do Tempo: “O que o homem pode fazer contra a marcha incessante do tempo?”